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Por José LuísPeixoto
“Avançamos por alguns dos caminhamos que imaginámos nos múltiplos pontos de observação da Guarda, e chegamos a Pinhel. Esta é ainda a tocante hospitalidade da Beira Interior.”
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Em 2001, com apenas 27 anos, José Luís Peixoto recebeu o Prémio Literário José Saramago. O prémio foi atribuído a Nenhum Olhar, o seu primeiro romance.
Desde então, através de inúmeras traduções, as suas obras têm sido difundidas nas mais diversas latitudes. O reconhecimento do público e da crítica afirmou-o como um dos autores de maior destaque da literatura portuguesa contemporânea.
“Contar-me a mim próprio através do outro e contar o outro através de mim próprio, eis a literatura.” Esta afirmação pertence ao romance Autobiografia, onde Peixoto ficcionou sobre José Saramago, integrando-o, como personagem, na sua obra, assim, reconhecendo a marca que o autor de Memorial do Convento lhe deixou.
Nesta Viagem a Portugal Revisited, José Luís Peixoto regressa aos caminhos de José Saramago, levando um olhar novo em busca do que mudou e do que permaneceu. Com atenção especial ao património, à natureza e à cultura, cada roteiro será o ponto de partida para paisagens literárias que nos contam a nós próprios através de Portugal.
Para ouvir José Luis Peixoto a ler um excerto sobre Guarda, Pinhel e Cidadelhe, do capítulo “Brandas Beiras de pedra, paciência: O homem que não esqueceu” da obra Viagem a Portugal, de José Saramago.
Brandas Beiras de pedra, paciência:
O homem que não esqueceu
«(...) Chegar à Guarda passada a uma da manhã, a um sábado, isto em março, que é alta estação de neve na serra, e confiar no patrono dos viajantes para lhe ter um quarto vago, é incompetência rematada. Aqui lhe disseram que não, além ninguém veio abrir, acolá nem vale a pena tocar à campainha. Voltou ao primeiro hotel, como é possível tão grande edifício, e não haver sequer um quarto. Não havia. O frio, lá fora, era de transir. O viajante podia ter pedido esmola de um sofá na sala de espera, para esperar a manhã e um quarto despejado, mas sendo pessoa com o seu orgulho entendeu que esta sua grave imprevidência merecia punição, e foi dormir dentro do automóvel. Não dormiu. Envolvido em tudo quanto podia fazer vezes de agasalho, trincando bolachas para enganar o apetite noturno e aquecer ao menos os dentes, foi a mais mísera criatura do Universo durante as longas horas do seu pessoal inverno polar.
(...) seguindo ao longo deste passeio, dá com o museu e entra.
Não faltam outros muito mais ricos, mais bem arrumados, mais obedientes às regras básicas da museologia. Mas, não dando o espaço para melhor e sendo tão diversas as coleções, tem de bastar ao viajante a virtude do que se mostra, e essa não é escassa. Veja-se esta Senhora da Consolação romântica, do século XII, feita da mesma pedra que o nicho que a envolve (aqui recorda o viajante o S. Nicolau que em Braga está), veja-se este barroco Salvador do Mundo, robusto e rubicundo, de larga testa desguarnecida, apenas coberto com o pano que lhe cobre as ancas e tendo lançado sobre ele um curto manto vermelho, vejam-se as palmatórias das esmolas para as almas, veja-se a pequenina e maciça Virgem coroada, com um Menino Jesus de rosto feito à sua imagem e semelhança, veja-se o tríptico seiscentista com Santo Antão, Santo António e um bispo, veja-se a pintura de frei Carlos, a Adoração, que tem a um canto uma referência à povoação de Açores, aonde o viajante não deixará de ir. Veja-se a magnífica coleção de armas, as peças romanas, outras lusitanas, os pesos e as medidas, as talhas, e também algumas pinturas do final do século XIX e deste em que estamos. E há de também interessar ver aqui reunidas algumas recordações do poeta Augusto Gil, que na Guarda passou a infância. Enfim, o Museu da Guarda merece abundantemente que o visitem. É quase familiar, talvez por isso se lhe sinta um coração.
(…) o viajante dá uma volta pelas estreitas ruas que o hão de levar à Praça da Câmara, onde está a estátua de D. Sancho I. São ruas sossegadas, estreitas, onde ninguém a esta hora passa (…). É uma cidade que tem mistérios, a Guarda. Vejam-se os postigos, ou janelas de dupla vidraça, forrados de papéis floridos, que não deixam olhar para dentro nem para fora: para que servirá a transparência se a ocultam, para onde dará este jardim inacessível?
Aí está, enfim, a Catedral. O viajante começa por vê-la do lado norte, com a larga escadaria e o portal joanino, por cima do qual se desenvolvem os sucessivos planos que correspondem, dentro, à nave lateral e à nave central, os arcobotantes arrestados nos botaréus respetivos. É maciça no seu soco, arejada nas obras altas, mas, quando se encara de frente para a fachada, o que os olhos veem poderia ser uma fortificação militar, com as torres sineiras que são castelos coroados de merlões denticulados. Como todo o edifício, excetuando a cabeceira, está implantado num espaço desafogado, a impressão de grandeza acentua-se. O viajante está a gostar da Guarda.
Entra pela porta e logo o envolve o grande interior gótico. (…)
O viajante percorre devagar as três naves, fixa duas altas janelas ou frestas cuja serventia não entende, mas, estando a luz tão a favor, mal parecia desprezá-las. Não lhe apetece sair daqui, talvez por estar sozinho. Senta-se num degrau de pedra, vê em escorço os feixes torcidos das colunas, medita sobre a arte desta construção, as nervuras das abóboras, a descarga calculada das partes altas, enfim, toma lai a sua lição sem mestre.
(...) De Cidadelhe a Pinhel são vinte e cinco quilómetros, nessa altura era carreiro, tudo pedras. (…)
(…) O viajante regressa ao quarto. Estende em cima da cama o seu grande mapa, procura Pinhel, cá está, e a estrada que entra pelas terras dentro, num ponto qualquer deste espaço morreu uma menina de sete anos, e então o viajante encontra Cidadelhe, lá em cima, entre o rio Coa e a ribeira de Massueime, é o cabo do mundo, será o cabo da vida. Se não houver quem se lembre.
Pão, queijo e vinho em Cidadelhe
Prima donna assoluta é a cantora de ópera que apenas faz principalíssimos papéis, aquela que nos cartazes ocupa sempre o primeiro lugar. Em geral, é caprichosa, impulsiva, inconstante. Desta também absoluta Primavera que adiantada veio, confia o viajante que não traga tais defeitos, ou tarde os mostre. De vantagem já leva dois magníficos e luminosos dias, o de ontem e o de hoje. Desce ao longo do vale que começa logo à saída da Guarda para sul e depois segue a par da ribeira da Gaia. É uma paisagem larga, de terras cultivadas, verdejando, em verdade o Inverno despede-se.
Perto de Belmonte está Centum Cellas ou Centum Coeli, o mais enigmático edifício destas paragens portuguesas. Ninguém sabe para que servia esta alta estrutura de mais de vinte metros: há quem afirme que terá sido templo, outros que foi prisão, ou estalagem, ou torre de acampamento, ou vigia. Para estalagem não se lhe vê o motivo, para vigia bastaria coisa mais simples, prisão só por avançadas pedagogias, tão desafogadas são estas portas e janelas, e templo, talvez, mas o vício está em facilmente darmos o nome de templo a quanto nos aparece. Pressente o viajante que a solução estará nos terrenos em redor, por que não é crível que este edifício aqui tenha surgido isoladamente, por uma espécie de capricho. Sob as terras lavradas se encontrará talvez a resposta, mas enquanto não for possível garantir trabalho sério e metódico, dinheiro pronto e protecção suficiente, é melhor deixar em paz Centum Cellas. Já se estragou demasiado em Portugal, por incúria, por falta de espírito de perseverança, por desrespeito.
Belmonte é a terra de Pedro Álvares Cabral, aquele que em 1500 chegou ao Brasil e cujo retrato, em medalhão, se diz estar no claustro dos Jerónimos. Estará ou não, que nisto de retratos de barba e elmo não há muito que fiar, mas aqui no castelo de Belmonte deve ter Pedro Álvares brincado e aprendido suas primeiras habilidades de homem, pois neste lugar estão as ruínas do solar que foi de seu pai, Fernão Cabral. Não deve ter tido má vida Pedro Álvares: a julgar pelo que resta, o solar era magnífico. O mesmo qualificativo merece a janela manuelina geminada nas muralhas que viram a poente. E a cintura dos muros é extensa, protegendo um grande espaço interior que o viajante estima ver limpo e varrido. Em alegre brincadeira andam ali crianças da escola primária, e tanto brincam elas como as duas professoras, quase da mesma idade. O viajante gosta de ver estes quadros felizes e sai a fazer votos por que se não zangue a professora morena nem se enfureça a professora loura quando uma daquelas crianças não souber quantos são nove vezes sete.
Mesmo ao lado, num pequeno adro, é a antiga igreja matriz. O viajante entra, desprevenido, e, dados três passos, para sufocado. Esta é uma das mais belas construções que já viu. Dizer que é românica e também gótica, de transição, será dizer tudo e nada dizer. Porque, aqui, o que impressiona é o equilíbrio das massas, e logo depois a nudez da pedra, sem aparelho, apenas ligadas as juntas irregulares. É um corpo visto por dentro e mais belo do que esperava ao entrar. Vão-se logo os olhos para a capela formada por quatro arcos, avançada em relação ao arco triunfal, sem cobertura, e dentro, encostado à parede, um grupo escultórico representando a Virgem e o Cristo morto, ele deitado sobre os joelhos dela, virando para nós a cabeça barbada, a chaga entre as costelas, e ela não o olhando já, nem sequer a nós. Estão decerto muito repintadas as cabeças, mas a beleza do corpo, talhado em duro granito, atinge um grau supremo. O viajante tem em Belmonte um dos mais profundos abalos estéticos da sua vida.
A Pietà é a mais magnífica peça que aqui existe. Mas não podem escapar sem atenção os capitéis das colunas próximas, nem o arco da capela-mor, nem os frescos que ao fundo estão. E se o viajante aturar o menor depois de ter contemplado o maior, tem na sacristia uma Santíssima Trindade com um Padre Eterno de olhos assustadoramente arregalados, e na nave uns túmulos renascentistas, mas frios, e um S. Sebastião atlético e feminino, de longos cabelos caídos sobre os ombros e gesto de afectada elegância. Veja tudo isto, mas antes de sair coloque-se outra vez diante da Pietà, guarde-a bem nos olhos e na memória, porque obras assim não as vê todos os dias.
De Belmonte vai o viajante a Sortelha por estradas que não são boas e paisagens que são de admirar. Entrar em Sortelha é entrar na Idade Média, e quando isto o viajante declara não é naquele sentido que o faria dizer o mesmo entrando, por exemplo, na Igreja de Belmonte, donde vem. O que dá carácter medieval a este aglomerado é a enormidade das muralhas que o rodeiam, a espessura delas, e também a dureza da calçada, as ruas íngremes, e, empoleirada sobre pedras gigantescas, a cidadela, último refúgio de sitiados, derradeira e talvez inútil esperança. Se alguém venceu as ciclópicas muralhas de fora, não há de ter sido rendido por este castelinho que parece de brincar.
(...)
O viajante tem um compromisso para esta tarde. Irá a Cidadelhe. Para ganhar tempo almoça em Sabugal, e, para o não perder, nada mais viu que o geral aspeto duma vila ruidosa que ou vai para a feira ou vem de feirar. Segue depois a direito para a Guarda, deixa no caminho Pousafoles do Bispo aonde tencionara ir para saber o que poderá restar duma terra de ferreiros e ver a janela manuelina que ainda dizem lá existir. Enfim, não se pode ver tudo, era o que faltava, ter este viajante mais privilégios que outros que nunca tão longe puderam ir. Fique Pousafoles do Bispo como símbolo do inalcançável que a todos escapa. Mas o viajante envergonha-se destas metafísicas quando a si mesmo decide perguntar que coisas alcançarão ou não os descendentes dos ferreiros de Pousafoles. (…)
Foi dito que entre Pinhel e Cidadelhe são vinte e cinco quilómetros. Juntem-se-lhes mais quarenta entre Guarda e Pinhel. Dá para conversar muito e é sabido que ninguém conversa mais do que duas pessoas que, mal se conhecendo, têm de viajar juntas. Às tantas já se trocam confidências, já se confiam vidas para além do que é geralmente contado, e então se descobre como é fácil entenderem-se pessoas no simples ato de falar, quando não se quer que no espírito do outro fiquem suspeitas de pouca sinceridade, insuportáveis quando se vai de companhia. (…). Em Pêra do Moço há um dólmen, e Guerra, sabendo ao que anda o viajante, apontou-o. Mas este dólmen não é dos que o viajante aprecia, não tem segredos nem mistério, está ali à beira da estrada, no meio do campo cultivado, nem lá se chega nem apetece. Dólmenes tem visto, porém nem já deles fala, para não confundir nas suas recordações aquela mamoa da Queimada onde ouviu bater um coração. Então julgou que era o seu próprio. Hoje, a tão grande distância e tantos dias passados, não tem a certeza.
Já Pinhel ficou para trás, agora as estradas são caminhos de mal andar, e depois do Azevo o que se vê é um grande deserto de montes, com terras tratadas onde foi possível. Há searas, breves, as de mais intenso verde são de centeio, as outras de trigo. E nas terras baixas cultiva-se a batata, o geral legume. Pratica-se uma economia de subsistência, come-se do que se semeia e planta.
Cidadelhe, calcanhar do mundo. Eis a aldeia, quase na ponta de um bico rochoso entalado entre os dois rios. O viajante para o automóvel, sai com o seu companheiro. (…) Ali perto está a Ermida de São Sebastião, e mesmo ao lado a escola. Entrega-se ao guia, e se a primeira visita deve ser a escola, pois que seja. São poucos os alunos. A professora explica o que o viajante já sabe: a população da aldeia tem vindo a diminuir, poucos mais há que uma centena de habitantes. Uma das meninas olha muito o viajante: não é bonita, mas tem o olhar mais doce do mundo. E o viajante descobre que para aqui vieram as velhas carteiras escolares da sua infância, são restos e sobras vindas da cidade para Cidadelhe.
A ermida estava fechada, e agora está aberta. Por cima da porta, sob o alpendre que defende a entrada, há uma pintura maneirista provincial que representa o Calvário. Defendida da chuva e do sol, não a poupam, em todo o caso, o vento e o frio: milagre é estar em tão bom estado. (…) «Este senhor gostaria de ver o pálio.» O viajante está atento à pintura, mas sente, no silêncio seguinte, uma tensão. Uma das mulheres responde: «O pálio não pode ser. Nem cá está. Foi para arranjar.» O resto foram murmúrios, um conciliábulo arredado, sem gestos, que nestes lugares mal se usam.
Entrou o viajante no pequeno templo e dá, de frente, com o S. Sebastião mais singular que os seus olhos encontraram. Vê-se que foi encarnado há pouco tempo, com a pintura envernizada, o tom róseo geral, a sombra cinzenta da barba escanhoada. Tem um dardo cravado em cheio no coração, e apesar disso sorri. Mas o que causa espanto são as enormes orelhas que este santo tem, verdadeiros abanos, para usar a expressiva comparação popular. Grande é o poder da fé, se diante deste santo, em verdade patusco, o crente consegue conservar a seriedade. E é grande esse poder, porque tendo-se aberto a porta da ermida já quatro mulheres estão fazendo oração. O único sorriso continua a ser do santo.
Os caixotões do teto mostram passos da vida de Cristo, de excelente composição rústica. Se se descontarem os efeitos da velhice, mais visíveis em algumas molduras, o estado geral das pinturas é bom. Apenas requerem consolidação, tratamento que as defenda. (...)
O pálio (…) é a glória de Cidadelhe. Ir a Cidadelhe e não ver o pálio, seria o mesmo que ir a Roma e não ver o papa. O viajante já foi a Roma, não viu o papa e não se importou com isso. Mas está a importar-se muito em Cidadelhe. Porém, o que não tem remédio, remediado foi. Coração ao alto.
A aldeia é toda pedra. Pedra são as casas, pedra as ruas. A paisagem é pedra. Muitas destas moradas estão vazias, há paredes derruídas. Onde viveram pessoas, bravejam ervas. (…). O viajante maravilha-se diante de algumas padieiras insculpidas ou com baixos-relevos decorativos: uma ave pousada sobre uma cabeça de anjo alada, entre dois animais que podem ser leões, cães ou grifos sem asas, uma árvore cobrindo dois castelos, sobre uma composição esquemática de lises e festões. O viajante está maravilhado. É neste momento que Guerra diz: “Agora vamos ver o Cidadão.” “Que é isso?”, pergunta o viajante. Guerra não quer explicar já: “Venha comigo.”
Vão por quelhas pedregosas, aqui nesta casa que em caminho fica mora uma irmã de Guerra, de seu nome Laura, e está também o cunhado, a limpar a corte do gado, tem as mãos sujas, por isso não se aproxima e saúda com palavras e sorrisos. Pergunta Laura: “Já viu o pálio?” Manifestamente contrafeito, Guerra responde: “Está a arranjar. Não se pode ver.” Afastam-se ambos para um lado, é outro debate secreto. O viajante sorri e pensa: “Isto há de querer significar alguma coisa.” E, enquanto vai subindo na direção de um campanário que de longe se avista por cima dos telhados, nota que Laura se afasta rapidamente por outra rua, como quem vai em missão. Curioso caso.
“Cá está o Cidadão”, diz Guerra. O viajante vê um pequeno arco armado ao lado do campanário, e, grosseiramente esculpida em relevo, uma figura de homem tendo por baixo meia esfera. No outro pilar do arco, em grandes letras, lê-se: “Ano de 1656.” O viajante quer saber mais e pergunta: “Que figura é esta?” Não se sabe. De memória de gerações sempre o Cidadão pertenceu a Cidadelhe, é uma espécie de patrono laico, um deus tutelar, disputado acesamente entre o povo de baixo (onde agora está) e as Eiras, que é o povo de cima, onde o viajante desembarcou. Houve um tempo em que as disputas verbais chegaram a aberta luta, mas acabaram por prevalecer as razões históricas, pois o Cidadão tem as suas raízes neste lado da aldeia. O viajante medita no singular amor que liga um povo tão carecido de bens materiais a uma simples pedra, mal talhada, roída pelo tempo, uma tosca figura humana em que já mal se distinguem os braços, e confunde-se em pensamentos, vendo como é tão fácil entender tudo se nos deixarmos ir pelos caminhos essenciais, esta pedra, este homem, esta paisagem duríssima. E mais pensa como há de ser melindroso bulir nestas coisas simples, deixá-las serem e transformarem-se por si, não as empurrar, estar simplesmente com elas, olhando este Cidadão é a felicidade que está no rosto do amigo novo que se chama José António Guerra, homem que decidiu guardar memória de tudo. “Que se sabe da história do Cidadão?”, perguntou o viajante. “Pouco. Foi encontrado não se sabe quando, numas pedras de além” (faz um gesto que aponta para a invisível margem do Coa) “e ficou sempre a pertencer ao povo.” “Por que é que lhe chamam Cidadão?” “Não sei. Talvez por ser a terra Cidadelhe.”
(…) Quando se aproxima da Ermida de São Sebastião vê, em ar de quem espera, aquelas mesmas idosas mulheres e outras mais novas. “É o pálio”, diz Guerra. As mulheres abrem devagar uma caixa, tiram de dentro qualquer coisa envolvida numa toalha branca, e todas juntas, cada qual fazendo seu movimento, como se estivessem executando um ritual, desdobram, e é como se a não acabassem de desdobrar, a grande peça de veludo carmesim bordada a ouro, a prata e a seda, com o largo motivo central, opulenta cercadura que rodeia a custódia erguida por dois anjos, e ao redor flores, fios entrelaçados, esferazinhas de estanho, um esplendor que nenhumas palavras podem descrever. O viajante fica assombrado. Quer ver melhor, põe as mãos na macieza incomparável do veludo, e numa cartela bordada lê uma palavra e uma data: “Cidadelhe, 1707.” Este é, em verdade, o tesouro que as mulheres de preto ciosamente guardam e defendem, quando já lhes custa guardar e defender a vida.
No regresso à Guarda, caía a noite, disse o viajante: “Então o pálio não estava a arranjar.” “Não. Quiseram convencer-se primeiro de que o senhor era boa pessoa.” O viajante ficou contente por o acharem boa pessoa em Cidadelhe, e nessa noite sonhou com o pálio.»
“Até pelos telhados se distinguem os muitos solares que compõem o centro da Guarda, casarões que guardam histórias de gerações, enredos de famílias.”
“Agora, parece que foi num passado sem fim mas, nesse tempo, havia um passado ainda mais remoto. Calcula-se que terá sido em finais do século XIII, ou em princípios do século XIV, que os canteiros ergueram as muralhas à volta da cidade da Guarda. As assinaturas cinzeladas nas pedras eram uma forma de identificar o trabalho de cada um e, assim, receberem o seu pagamento. Hoje, esses símbolos esculpidos no granito mostram que, por detrás desta obra, havia gente concreta. Um passado de séculos desumaniza, cria desconhecimento, retira nitidez, mas aquelas pequenas linhas revelam vida quotidiana, pessoas como nós.
São pedras enormes de granito, silhares, conforta saber que os trabalhadores eram pagos por carregá-las, dar-lhes forma, integrá-las nesta construção. A Torre dos Ferreiros está assente sobre a porta que resta dos principais acessos ao núcleo da cidade medieval. Hoje, exibe um nicho dedicado ao Nosso Senhor dos Aflitos, século XVIII, uma modernice para os canteiros que levantaram esta edificação, um elemento já com interesse histórico para nós.
Também as escadas são feitas desse mesmo granito que atravessa o tempo. Depois de subi-las, somos recompensados com céu, telhados e distância. Estes antigos limites da Guarda ficam agora no seu centro e, por isso, ao olharmos em volta, identificamos várias referências da cidade. Lá longe, a nossa vista alcança paisagens que ultrapassam em muito essas fronteiras, como é o caso da Serra da Estrela ou dos vales do Zêzere e do Côa. Mas, mais perto, temos logo aqui a Igreja da Misericórdia ou, do outro lado, a torre da Igreja de São Vicente, ou, do outro lado ainda, a obrigatória Sé, a sobressair de todo o casario. Atrás, a Torre de Menagem, esse sim, o ponto mais alto desta cidade tão alta.
Até pelos telhados se distinguem os muitos solares que compõem o centro da Guarda, casarões que guardam histórias de gerações, enredos de famílias. Andando por essas ruas, dou com a imagem surreal de dois homens que carregam uma cesta gigante, obra da freguesia de Gonçalo, onde se mantêm grandes tradições no trabalho da verga e do vime. A cesta tem a altura desses homens, avançam com cuidado pelo passeio e entram num edifício. Sigo-os até ao pátio interior do Museu da Guarda. Explicam-me que a enorme cesta servirá de cenário a uma apresentação que, não falta muito, será feita neste espaço. No seguimento da conversa, com paciência, contam-me também que este edifício, hoje museu, já foi seminário, repartição de finanças, posto da guarda, escola e prisão. Imagino o que terá sido estar aqui em cada um desses tempos, o mesmo lugar a ser muitos lugares, e aproveito para visitar duas exposições. Uma delas consiste nas fotografias feitas por José Saramago há pouco mais de quarenta anos, quando andava pelo país, na preparação do livro Viagem a Portugal. Com o meu telemóvel, fotografo as fotografias de Saramago.
“Quando me acomodei no meu vagão, e enquanto esperava partir, voltei a olhar para a Guarda, empoleirada na sua montanha; essa Guarda que tantas vezes atraiu os meus olhares.” Estas são palavras de Miguel de Unamuno nas páginas de Por Terras de Portugal e de Espanha, de 1911. Ao citá-las, evoco a comoção que acompanha a despedida desta cidade, os rostos que nos receberam, a simpatia que nos dedicaram.
No entanto, espera-nos uma viagem curta. Avançamos por alguns dos caminhamos que imaginámos nos múltiplos pontos de observação da Guarda, e chegamos a Pinhel. Esta é ainda a tocante hospitalidade da Beira Interior. No topo do Castelo de Pinhel, não restam dúvidas de que esta é também a sua arrebatadora paisagem: Mêda de um lado, Serra da Marofa e Figueira de Castelo Rodrigo do outro e, depois de Almeida, vila fortificada, estão fronteiras que o olhar não distingue.
Não há realmente fim para esta viagem. Depois do último ponto, para lá das palavras, existe ainda o início de muitos caminhos em Pinhel: no vinho desta terra, nas intrincadas ruas estreitas do centro da cidade, e dentro do tempo que aqui se abriga, história desmedida, passado de um enorme passado, origem profunda.”
José Luís Peixoto
O que visitar
Na viagem revisitada de José Luís Peixoto, estes foram alguns dos locais destacados pelo seu olhar e pela sua escrita.
“Os campos parecem infinitos porque, em todas as direções apenas se veem campos, e a vista alcança enorme lonjura. O nosso olhar agiganta-se de tal modo na paisagem que é como se deixássemos de possuir corpo, e existimos no tamanho deste olhar. Atravessamos a distância com a mesma facilidade dos pássaros, voos que nem sempre acompanhamos, mas que ouvimos, os cantos dos pássaros reviram-se no ar, são como rugas de transparência ou luz. Enchemos os pulmões.
Cá em cima, escuta-se a luta da água com o caminho, a espuma de encontro às rochas, o rio Côa no seu curso puro, inalterado. O rio não sente os nossos olhares, basta-lhe a companhia destas enormes encostas, de toda a vida que o rodeia há séculos incalculáveis. As cores formam uma coerência que sugere o mundo inteiro. Como será que as árvores que aqui nasceram imaginam o resto do mundo? Talvez os pássaros lhes tragam notícias de outras paragens. Serão as árvores capazes de concebê-las? Nós, antes de aqui chegarmos, não éramos capazes de realmente conceber este lugar.
O céu, sempre ele, por cima de tudo e, no entanto, a ser um céu novo, como no primeiro dia dos tempos. E o granito maciço, e a sombra das nuvens a flutuar na superfície das encostas, e o vento, invisível ou não, a encher os ouvidos de um rugido. Há uma unidade inseparável entre tudo o que vemos, escutamos, sentimos. Fazemos parte dessa existência.”
José Luís Peixoto
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Com influências do estilo manuelino e gótico, a sua sobriedade em plena Praça Luís de Camões traça a vida e os costumes dos guardenses e visitantes. As torres octogonais evidenciam-se no exterior, sendo que, dentro de quatro paredes, encerra o monumental retábulo da capela-mor, talhado em pedra de Ançã.
Um espaço dedicado a um dos nomes fundamentais da filosofia, Eduardo Lourenço, falecido no final de 2020, que evoca a cultura, a sapiência e a reflexão em todo o seu esplendor. Expostas a propósito do último Simpósio Internacional de Arte Contemporânea da Guarda, as esculturas contemporâneas no bosque que o circunda dialogam com a natureza e transmutam-se ao olhar dos visitantes neste museu ao ar livre.
Espaço dedicado a exposições, apresentações e espetáculos, a sua arquitetura em Estilo Chão demarca a sobriedade do claustro e pátio interiores, mas também engradece os momentos de fruição cultural que ali se desenrolam. A sua programação é dinâmica, o que torna este ponto de interesse da cidade num núcleo de projetos e atividades artísticas para os munícipes.
Cidade-falcão da Beira Interior, Pinhel é adornada pelo Castelo, um exemplo único da arquitetura manuelina em Portugal. Muralhas, duas torres que se erguem, quais aves de rapina, em direção ao céu, e seis portas (Santiago, S. João, Marrocos, Marialva, Alacavar e da Vila) compõem este monumento. Vale a pena ter os olhos bem abertos para os peculariares “mata-cães” e para as siglas gravadas em pedra, estas últimas cenário de uma experiência de realidade virtual.
Na cidade dos cinco F's (Forte, Farta, Fria, Fiel e Formosa), independentemente da estação do ano, os sentidos são reconfortados. Das entradas ao prato principal, passando pela doçaria, a tradição senta-se à mesa, sendo inevitável degustar o típico queijo da serra, os enchidos e as cavacas de Pinhel ou os bolos de azeite.
Bragança
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Guarda, Pinhel e Cidadelhe -